Fé à flor da pele: mesmo sob chuva, encenação da Paixão de Cristo reúne 5 mil pessoas em Bálsamo

Rodrigo Lima
Encenação da Paixão de Cristo reuniu cerca de cinco mil péssoas/imagem – Celso Pantano

A chuva que caiu na madrugada desta Sexta-feira Santa (18/4) não espantou a multidão que, silenciosamente, caminhou pelas ruas de Bálsamo, no interior de São Paulo, para acompanhar a tradicional encenação da Paixão de Cristo. Com guarda-chuvas, capas ou simplesmente de peito aberto, cerca de 5 mil pessoas — segundo estimativa dos organizadores — participaram do evento que há quase quatro décadas mobiliza a cidade.

A apresentação começou por volta da meia-noite, com cenas encenadas no palco montado na Praça da Matriz. Quatro cenários recriavam momentos marcantes da narrativa bíblica: o Templo dos Sacerdotes, o Palácio de Herodes, o Orto das Oliveiras e o Palácio de Pilatos. Da praça, o cortejo seguiu em procissão por quatro quilômetros até o cruzeiro municipal, na já tradicional Caminhada com Cristo. O trajeto é simbólico: refaz os passos da Via Crucis, vivenciando o sofrimento de Jesus em sua última jornada.

A encenação contou com aproximadamente 100 voluntários. Foram cerca de 80 atores e 20 pessoas nos bastidores — desde o figurino e maquiagem até a iluminação improvisada nas ruas. Pelo quarto ano consecutivo, o papel de Jesus foi interpretado por Ronaldo Parra, de 30 anos, gerente de logística e morador da cidade.

“É uma honra, mas também uma responsabilidade muito grande. Não é só teatro. É fé, é entrega. O que fazemos ali toca as pessoas de verdade”, afirmou Ronaldo à reportagem, visivelmente emocionado nos bastidores, antes de se juntar ao elenco.

Desde adolescente, Ronaldo participa da montagem — primeiro como soldado romano, depois como apóstolo, até assumir o papel principal. “Quando olho para a multidão em silêncio, muitos chorando, percebo que esse esforço vale a pena. Jesus não é só um personagem. Ele é um ensinamento vivo.”

Quase quatro décadas de tradição
A encenação faz parte da 37ª edição da Caminhada com Cristo de Bálsamo, evento que nasceu de forma modesta em 1986, com apenas 27 participantes. “Naquele tempo, não tinha palco, nem luz, nem figurino. A gente andava rezando, só isso. Mas a fé já era grande”, relembra João Ribeiro, 63, um dos primeiros participantes da caminhada.

Foi só em 1997 que a encenação passou a integrar o percurso. Um grupo de atores amadores, liderado por jovens da Paróquia Santuário Nossa Senhora da Paz, decidiu dar vida aos momentos finais de Jesus. O que começou como uma iniciativa pontual se tornou tradição.

“Ver o que essa cidade se tornou, como as famílias se mobilizam, como as crianças esperam por esse dia… é emocionante”, diz a professora aposentada Nilza Duarte, 70, que acompanha a procissão desde a década de 1990. “Tem algo de sagrado que não se explica, só se sente.”

A realização do evento contou com o apoio da Paróquia Santuário Nossa Senhora da Paz e da Prefeitura de Bálsamo. “A encenação é uma forma de vivermos a espiritualidade da paixão e morte de Jesus Cristo de maneira mais profunda”, explicou o padre Geraldo Fernandes Neto. “É a fé em movimento, com a participação de toda a comunidade.”

O prefeito Luiz Antônio Sanches (PL), presente no evento, destacou o caráter cultural e religioso da celebração. “Bálsamo é uma cidade de fé, e essa tradição mostra que, mesmo diante das dificuldades, nosso povo permanece unido. É um dos momentos mais bonitos do nosso calendário.”

Chuva, lágrimas e oração
O céu fechado ameaçava desde o início da noite, e a chuva chegou já nos primeiros minutos da apresentação. Mas ninguém arredou pé. Crianças, idosos, casais, jovens de grupos religiosos — todos seguiram firmes no percurso. A cada estação da Via Crucis, uma nova cena tomava forma: o julgamento de Jesus, a coroa de espinhos, a queda sob o peso da cruz, o encontro com Maria, a crucificação.

“Quando ele caiu pela segunda vez e levantou com a cruz nos ombros, chorei como nunca. Porque me vi ali também”, contou a comerciante Andreia Lopes, de 45 anos, que veio de Monte Aprazível com a filha adolescente. “A gente carrega tantas cruzes, e essa caminhada ajuda a dar sentido a tudo.”

Um palco aberto para o sagrado
A produção da encenação mobiliza a cidade durante meses. Figurinos costurados à mão, ensaios nos fins de semana, captação de recursos para equipamentos de som, iluminação improvisada com refletores emprestados e até a pintura dos cenários é feita por voluntários.

“Não somos profissionais, mas o que temos de sobra é dedicação”, diz Tainá Alves, 22 anos, estudante de enfermagem e responsável por coordenar o grupo de figurino. “A gente acredita que, mesmo com simplicidade, conseguimos emocionar.”

A montagem conta ainda com suporte técnico da Prefeitura, que ajuda com a estrutura de palco, apoio da Defesa Civil, controle de trânsito e segurança. A Guarda Civil e a Polícia Militar acompanharam o cortejo ao longo de todo o trajeto.

Um evento que transcende a religião
Embora organizado pela Igreja Católica, a Caminhada com Cristo atrai também evangélicos, espíritas e até pessoas que se dizem “sem religião”. Para o padre Geraldo, essa abertura é natural. “A mensagem de Jesus é universal. Ele não veio por uma denominação, mas por toda a humanidade.”

O agricultor Claudinei Moura, evangélico, levou os dois filhos pequenos pela primeira vez. “A gente respeita. É bonito, toca o coração. É importante que eles vejam isso. É parte da nossa cultura e do nosso povo.”

Esperança renovada
Ao final da encenação, já no Cruzeiro, por volta das 3h30 da manhã, o silêncio tomou conta da multidão. A cena da crucificação foi encerrada com orações, luzes baixas e lágrimas discretas entre o público. Mesmo com a roupa encharcada e os pés cobertos de lama, ninguém arredou o olhar do palco.

“Volto pra casa em paz”, disse Ana Clara, 17, que veio com a avó de bicicleta. “A gente reclama de tanta coisa pequena no dia a dia. Essa história mostra o que realmente importa.”

E é essa a força da fé em Bálsamo. Choveu, mas não desanimou. Molhou, mas não apagou. Pelo contrário: fortaleceu. Como costuma dizer o próprio Ronaldo Parra antes de subir ao palco, já com a cruz nos ombros: “Hoje não somos só atores. Somos testemunhas.”

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