A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados debateu nesta terça-feira,19 o projeto de lei (PL) que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A articulação dos parlamentares para aprovar o PL gerou reação da comunidade LGBTI+ no Brasil, que considera a medida inconstitucional e um ataque à cidadania. A votação foi adiada para a próxima semana.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como núcleo familiar. Em 2013, o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) determinou que todos os cartórios do país realizassem casamentos homoafetivos.
Já o texto prestes a ser analisado na Comissão da Câmara pretende incluir no Artigo 1.521 do Código Civil o seguinte trecho: “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar.” Atualmente, o Artigo 1.521 enumera os casos em que o casamento não é permitido, como nos casos de união de pais com filhos ou de pessoas já casadas.
Na justificativa, o relator do texto, deputado federal Pastor Eurico (PL-PE), afirmou que o casamento “representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”.
Ao defender a aprovação do projeto, o relator citou o parágrafo 3º do Artigo 226 da Constituição que diz que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Com isso, o relator Pastor Eurico afirma que “resta claro que a própria Constituição mitiga a possibilidade de casamento ou união entre pessoas do mesmo sexo”.
O parlamentar pernambucano ainda criticou a decisão do STF que reconheceu a união homoafetiva. “Mais uma vez, a Corte Constitucional brasileira usurpou a competência do Congresso Nacional, exercendo atividade legiferante incompatível com suas funções típicas”, argumentou.
Ataque à cidadania
A tentativa de aprovar um projeto para proibir o casamento homoafetivo foi duramente criticada por organizações de direitos humanos e da comunidade LGBTI+.
O presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis, um dos autores da ação que originou a decisão do STF a favor do casamento homoafetivo, acredita que o projeto não deve prosperar no Congresso Nacional. A iniciativa “gera discurso de ódio porque eles não querem que nós existamos como cidadãos e cidadãs”, afirma Reis.
Sobre o argumento usado pelo relator, Toni Reis lembrou que o Supremo considerou que os artigos 3º e 5º da Constituição se sobressaem ao Artigo 226.
“Esse Artigo 226 está contradizendo o Artigo 5º, que diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Então, o Supremo se ateve ao Artigo 5ª que é uma cláusula pétrea”, afirmou. As cláusulas pétreas são os artigos da Constituição que não podem ser alterados nem mesmo por proposta de emenda à Constituição (PEC).
Toni Reis acrescentou que o projeto é um ataque à cidadania no Brasil. O também presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (Abrafh) lembrou ainda que será lançada nesta terça-feira a Frente Parlamentar Mista por cidadania e direitos LGBTI+ no Congresso Nacional com o apoio de 262 deputados ou senadores. “O reconhecimento do casamento homoafetivo é um caminho sem volta”, concluiu.
O Grupo Estruturação – LGBT+ de Brasília convocou um ato de repúdio contra o projeto de lei para hoje, às 11h, em frente ao anexo II da Câmara dos Deputados. O presidente do grupo, Michel Platini, ressalta a importância da manutenção do direito. “Com o reconhecimento das uniões homoafetivas, a população LGBT+ passou a ter acesso aos direitos civis, que agora estão sob ameaça. É fundamental que a sociedade brasileira compreenda a relevância dessas conquistas e se una para proteger os direitos e a dignidade de todos os seus cidadãos, independentemente da orientação sexual.”
Crítica
Participantes do 20º Seminário LGBTQIA+ do Congresso Nacional criticaram a tentativa de deputados de votarem projeto de lei proibindo a união homoafetiva (PL 5167/09) em comissão da Câmara dos Deputados.
No mesmo momento da realização do evento, a Comissão de Previdência estava reunida para votar a proposta que proíbe que relações entre pessoas do mesmo sexo equiparem-se ao casamento ou a entidade familiar. Após algumas horas de discussão, houve acordo entre apoiadores e críticos para adiar a votação para a semana que vem.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos, a deputada Luizianne Lins (PT-CE) afirmou que o momento deveria ser de retomada das políticas para a comunidade LGBTQIA+ e de luta contra os retrocessos para esse segmento da população.
Secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, Symmy Larrat afirmou que a iniciativa de votar esse projeto é uma tentativa de obter holofotes para um movimento que cultiva o ódio às pessoas LGBTQIA+. Na avaliação dela, é preciso planejamento estratégico para enfrentar esses discursos e conseguir implementar políticas públicas para esse segmento da população.
Ela informou que neste ano haverá o maior orçamento da história para as pessoas LGBTQIA+, mas ainda assim será insuficiente para as políticas públicas necessárias para garantir a vida e os direitos desse grupo.
Diálogo com evangélicos
Diretor Presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis defendeu o diálogo com as pessoas evangélicas sobre o tema. “Nós não queremos destruir a família de ninguém, não queremos erotizar nenhuma criança”, disse. “Eu não conheço uma família que foi destruída pela decisão do STF. E se alguém souber que alguma família, alguém perdeu direitos por 20 milhões de pessoas terem ganhado direito ao casamento, eu desisto da militância LGBTI+”, acrescentou.
Segundo Reis, estão em análise na Câmara 36 projetos favoráveis à comunidade e 63 projetos que tiram direitos dos LGBTQIA+ na Casa. Ele defendeu a aprovação pelos parlamentares do Projeto de Lei 7292/17, chamado de “Lei Dandara”, em homenagem a uma travesti assassinada no Ceará, sobre o enfrentamento da LGBTfobia. E salientou que a Frente Parlamentar Mista por Cidadania e Direitos LGBTI+, integrada hoje por mais de 260 parlamentares, nunca foi tão grande.
Projeto inconstitucional
Secretária da Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Bruna Benevides acredita que a discussão do projeto no mesmo dia e hora de realização do seminário é uma tentativa de enfraquecer a articulação do movimento LGBTQIA+. “Essas armadilhas querem nos desviar do nosso objetivo, que é avançar, e a gente está avançando e vai avançar cada vez mais”, opinou. Ela observou que, caso o projeto de lei seja aprovado pelo Congresso Nacional, ele será barrado pelo STF, por ser inconstitucional.
“Se hoje não há a menor possibilidade de eles impedirem efetivamente o casamento, ou negarem o acesso à retificação de nome e gênero ou a garantia do acesso à saúde para a juventude e as crianças, todos direitos que nós conquistamos, é porque nós, enquanto movimento, conseguimos pautar essas conquistas de forma sólida”, afirmou.
Projeto reacionário
Representante da Liga Brasileira de Lésbicas, Léo Ribas disse que milhares de pessoas LGBTQIA+ e seus filhos terão a segurança jurídica retirada de viver como famílias se o projeto de lei seguir adiante. “Retirar o direito ao casamento igualitário diz muito sobre um projeto reacionário e fascista, porque retira também o nosso direito de inserção na sociedade, como casais que compartilham toda uma vida”, declarou. Na visão dela, o Parlamento deveria, na direção oposta, estar atuando para proteger esse segmento da população, já que o Brasil continua a ser o país que mais mata pessoas LGBTQIA+.
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Heliana Hemetério disse não imaginar que teria que discutir a legalidade da união homoafetiva de novo, depois da decisão do STF em 2011. Para ela, o pacto da heteronormatividade é silencioso e está cada vez mais forte. “O pacto da heteronormatividade está cada vez mais fechado e se fortalecendo contra nós, com o apoio das igrejas neopentecostais”, avaliou.
Secretária da Cidadania e da Diversidade do Ceará, Mitchelle Meira também lamentou os retrocessos do Legislativo, quando é preciso avançar em legislações positivas para a proteção da população LGBTQIA+. “Tenho certeza que a população brasileira não é todo esse ódio não, é uma pequena camada da população”, opinou.
Representatividade política
Representante da Fundação Luminate, Gustavo Ribeiro chamou a atenção para resultados de pesquisa conduzida pela fundação em conjunto com o Instituto Ipsos mostrando que, para 59% dos brasileiros, a população LGBTQIA+ deveria ter uma representação maior na política. O Brasil lidera o ranking que defende o aumento do acesso desse grupo aos espaços de poder nos quatro países da América Latina que foram analisados – Brasil, Argentina, Colômbia e México. O levantamento mostra ainda que 63% dos entrevistados no Brasil concordam total ou parcialmente que a diversidade de vozes — incluindo a pluralidade de identidades de gênero e sexualidades — é um aspecto essencial de uma democracia.
Conforme ele, para 52% dos entrevistados, os principais obstáculos para o aumento da representatividade política das pessoas LGBTQIA+ são a violência, o preconceito e a discriminação. E 54% dos entrevistados no Brasil apoiam a garantia de recursos partidários para candidatos LGBTQIA+, algo que ainda não foi discutido. Ele acredita que a vontade popular está em direção contrária às medidas discutidas no Congresso.
(Com Câmara Federal)