
A Prefeitura de identificou 14 “médicos fantasmas” que estariam atuando de forma irregular nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e prontos-socorros da cidade. A denúncia, confirmada por um relatório de 90 páginas ao qual foi divulgado pela Folha de São Paulo, escancara uma crise entre a gestão do Coronel Fábio Candido (PL), a categoria médica e a fundação responsável por parte dos profissionais de saúde, a Funfarme.
O documento é resultado de uma sindicância iniciada em janeiro de 2025, quando o atual secretário de Administração, Adilson Vedroni, ainda comandava a pasta da Saúde. Segundo ele, a apuração se deu após o recebimento de denúncias anônimas sobre ausência de médicos em plantões. “Foi uma das primeiras ações determinadas pelo prefeito Fábio Candido assim que assumi a nova pasta. A ideia era dar resposta concreta à sociedade e reforçar o controle sobre a presença dos profissionais nas unidades”, afirma Vedroni.
A investigação cruzou registros de ponto eletrônico com a produtividade médica e prontuários eletrônicos de pacientes. Foram identificados casos em que profissionais marcavam presença mas não realizavam atendimentos, ou ainda batiam ponto por colegas. Há também relatos de “operação tartaruga” e de profissionais sem registro no Conselho Regional de Medicina (Cremesp) atuando nas unidades.
Alvos da sindicância
Dos 22 médicos citados no relatório, 14 já têm irregularidades apontadas. Três pertencem ao quadro efetivo da Prefeitura e os demais foram contratados pela Funfarme, que mantém convênio com o município para o atendimento de urgência. As punições administrativas para os servidores estatutários vão desde suspensão até exoneração – uma delas já pediu desligamento voluntário. Aos celetistas da Funfarme, a recomendação do Executivo é pelo “imediato desligamento”.
Vedroni afirma que, se a Funfarme não substituir os profissionais, o próprio Executivo tomará providências emergenciais, inclusive com contratações diretas por tempo determinado. O secretário também revelou que o prefeito determinou melhorias nos mecanismos de controle de jornada, como o uso de câmeras de vigilância próximas aos pontos eletrônicos e possível adoção de reconhecimento facial.
Funfarme: “Não fomos comunicados”
A Funfarme divulgou nota à Folha de SP dizendo não ter sido formalmente notificada da sindicância, tampouco ter tido acesso ao conteúdo do relatório. “Somente após a devida cientificação, poderemos adotar eventuais providências internas”, diz o comunicado.
Sindicato dos Médicos reage
A presidente do Sindicato dos Médicos de Rio Preto, Merabe Muniz, divulgou vídeo nas redes sociais criticando a forma como a investigação foi conduzida. Ela classificou o processo como parcial e denunciou uma suposta perseguição seletiva contra profissionais que não fazem parte da atual administração.
“Poderia vir Jesus Cristo em pessoa dizendo que não há irregularidades, que eles dariam um jeito de achar alguma”, ironizou Merabe. Segundo ela, muitos dos médicos citados ocupavam cargos administrativos, como diretores e coordenadores de setores, que não exigem produtividade em atendimentos clínicos. “Diretor de UPA não atende na porta. Ele cuida de escalas, responde a ofícios e trata de questões burocráticas. Agora, os diretores que são da atual gestão, como o doutor P. e o doutor O., curiosamente não foram investigados, apesar de estarem nas mesmas condições dos que foram punidos”, afirmou.
Merabe também afirma que parte dos médicos foi afastada ou desligada sem sequer ser ouvida. “O relatório já determina o desligamento de 12 profissionais. Eles não tiveram direito à defesa. Isso fere o artigo 5º da Constituição Federal. Um deles me disse: ‘Esse é o prêmio por eu ser uma boa profissional’”, desabafa.
Bastidores da denúncia
Segundo o documento, houve ainda casos graves como a autorização para que estagiários atuassem sem CRM, supostamente sob supervisão de médicos vinculados à antiga gestão. A presidente do sindicato, no entanto, explica que os internos eram do 5º e 6º ano e estavam atuando de forma regular e documentada, como ocorre em várias unidades do SUS com convênios de ensino.
“O atendimento desses estudantes estava sob minha supervisão direta. Não havia nenhuma ilegalidade. Todos os trâmites foram seguidos como exige a Secretaria da Saúde e o Departamento de Ensino”, afirma Merabe, que também atuou como gestora anteriormente.
Ela ainda criticou a falta de escuta dos envolvidos na sindicância. “Nenhum dos médicos foi chamado para explicar sua função, sua escala ou a razão da baixa produtividade. Médicos que atuam em setores críticos atendem menos pacientes, porque esses pacientes demandam mais tempo. Isso é básico na medicina de emergência.”
Efeitos colaterais e politização
A polêmica chega em um momento simbólico: os 100 primeiros dias do governo Fábio Candido, que celebrou a sindicância como uma de suas principais ações até agora. Para opositores e profissionais de saúde, no entanto, o relatório seria um movimento político, visando enfraquecer adversários internos e reforçar o discurso de moralização da máquina pública.
“O mais curioso é que os únicos diretores não investigados são os ligados à nova gestão. Isso precisa ser analisado com seriedade. Investigar uns e blindar outros é inadmissível. Transparência e moralidade não combinam com seletividade”, critica a presidente do sindicato.
A Prefeitura rebate e afirma que os nomes investigados foram definidos com base em critérios objetivos: ausência de registro em ponto eletrônico, ausência de atendimentos e falhas nas justificativas. “É preciso entender que há uma responsabilidade pública com os recursos da saúde. Médicos precisam cumprir jornada e atender os pacientes. Isso é o mínimo”, diz Vedroni.
Cremesp ainda não foi acionado
Apesar de Vedroni afirmar que pediu a atuação do Conselho Regional de Medicina, o próprio Cremesp declarou que ainda não foi procurado oficialmente. A entidade médica é responsável por avaliar condutas éticas e pode abrir sindicâncias próprias contra os profissionais citados.
A expectativa é de que a sindicância completa da Prefeitura gere novos desdobramentos em até 60 dias. Enquanto isso, cresce a pressão sobre a Funfarme, o prefeito Fábio Candido e a própria Secretaria de Saúde para esclarecer a condução dos processos, garantir o contraditório e assegurar que eventuais punições sejam justas e embasadas.
O que diz a lei?
A Constituição Federal garante em seu Art. 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A ausência de escuta formal dos médicos envolvidos pode gerar questionamentos jurídicos e ações na esfera administrativa.
Situação atual:
Total de médicos investigados: 22
Médicos com irregularidades apontadas: 14
Efetivos da Prefeitura: 3
Vínculo com Funfarme: 11
Médicos já afastados: 1 (com PAD em andamento)
Pedidos de exoneração: 1
Punições aplicadas: ainda em apuração